O Boulton Paul Defiant foi uma daquelas boas ideias que surgem que, empregadas fora do seu contexto ideal, entraram para a História como retumbantes fracassos. Mesmo?
Fazia todo sentido em 1935 a proposta de um interceptador especializado para atacar bombardeiros inimigos, veloz e equipado com armamento pesado e grande concentração de fogo, com um tripulante responsável pela observação e operação das armas. O novo avião seria uma versão moderna do Bristol F.2b da I Guerra, espalhando o terror entre as formações que se aventurassem a bombardear a Grã-Bretanha. Atacando em grupos, cruzando entre si o fogo sobre o inimigo e mirando nos pontos mais vulneráveis, os novos caças poderiam ser extremamente eficazes, desde que lhes fosse garantida a impunidade por meio de uma efetiva proteção contra os inevitáveis caças de escolta.
O conceito sobreviveu no período entre-guerras culminando no desenvolvimento de caças como o Hawker Demon, que incorporava a então emergente tecnologia das torretas de tiro. Elas permitiam concentrar o fogo não de uma, mas de várias metralhadoras em um pacote de mais fácil operação para o artilheiro – embora à custa de um aumento significativo no peso do avião.
Para suceder o Demon, a Especificação F.9/35 demandava a concepção de um caça defensivo de dois lugares, de uso diurno e noturno, dotado de uma torreta e que fosse capaz de fazer 467 km/h a 4600 metros. Dos sete projetos apresentados (inclusive um dos últimos projetos de Reginald Mitchell que era baseado no Spitfire), dois foram selecionados: o Hawker Hotspur, um derivativo do Hurricane, e o Boulton-Paul P.92, que viria a ser conhecido como Defiant. Inicialmente o Hotspur foi selecionado pela RAF, mas como a Hawker já estava sobrecarregada com a produção do Hurricane e de qualquer maneira o projeto do Hotspur estava bastante atrasado decidiu-se que o modelo a entrar em fabricação seria o Defiant. Ademais, a Boulton Paul seria de qualquer maneira a fornecedora das torretas qualquer que fosse o caça a ser produzido.
O primeiro vôo do protótipo foi em agosto de 1937. A entrada em produção foi atrasada em função de a Bulton Paul estar comprometida com a entrega dos Blackburn Roc para a FAA, de modo que em agosto de 1939 somente três Defiants haviam sido entregues à RAF.
Entre dezembro de 1939 e março de 1940, o Esquadrão 264 – o primeiro a receber os Defiants - trabalhou arduamente para colocar o novo caça em situação operacional, explorando o envelope de vôo e desenvolvendo táticas para a seu emprego em combate. Mesmo o problema da vulnerabilidade ante o ataque pelos caças de escolta foi parcialmente resolvido por meio da formação de um “círculo defensivo” descendente, uma adaptação do Círculo Lufbery da I Guerra no qual os atacantes ficavam vulneráveis ao fogo cruzado das torretas. Em meados de maio os Defiants do 264 fizeram as suas primeiras missões, conseguindo algumas vitórias animadoras. Na tarde de 29 de maio, em duas missões, um resultado impressionante foi obtido: o esquadrão alegou ter destruído nada menos que 37 aviões inimigos: 19 Ju-87 Stukas, 9 Bf-110, 8 Bf-109s e um Ju-88, para a perda de um único artilheiro (que saltou do seu avião avariado para a morte, enquanto que o avião e o piloto conseguiram retornar). Este foi o melhor resultado em combate de um esquadrão de caça da RAF em um único dia, recorde que perdura até hoje. Obviamente, as expectativas em torno do Defiant foram bastante infladas com esses primeiros resultados.
É bom ressaltar que uma parte do estrondoso “sucesso” dos Defiant pode ser creditada a um natural exagero decorrente do fato que normalmente para cada avião inimigo derrubado contribuíram mais de um Defiant de cada vez. Esse fenômeno, verificado depois por exemplo na campanha de bombardeio sobre a Alemanha pelas Fortalezas Voadoras americanas, inflou ainda mais as expectativas sobre o Defiant, sem lastro em fatos. Por exemplo, das 37 vitórias apregoadas no famoso 29 de maio, os registros alemães contabilizaram apenas 12 a 15 perdas, pouco mais de 1/3 do declarado.
Infelizmente para as tripulações dos Defiants as condições em que a Batalha da Inglaterra seria travada algumas semanas depois não seriam tão propícias. Analisando com a confortável perspectiva da História, hoje podemos listar vários erros de avaliação e gestão que foram cometidos e que, em conjunto, levaram a um grande desastre:
• A fórmula, em si, carregava um problema básico. O Defiant era, assim como o Fairey Battle, muito avião para pouco motor. Sem toda a potência necessária para carregar uma torreta, sistemas elétricos e hidráulicos associados, quatro metralhadoras, munição suficiente e um tripulante adicional em um avião de porte modesto. Embora pouco maior em comprimento e envergadura, um Defiant pesava quase o dobro de um Spitfire ou Hurricane (ou um Bf-109) e era propulsionado basicamente pelo mesmo RR Merlin III dos caças monopostos, que estava na classe de meros 1000 HP. A velocidade final era boa, a boa aerodinâmica proporcionava um avião dócil, estável e relativamente ágil, mas o alto peso/potência fazia com que o avião não respondesse tão rapidamente quanto os seus adversários;
• De fato, desde o início, o Defiant não foi concebido para ser um caça para combater outros caças. Quando foi lançado sem a adequada cobertura de Spitfires ou Hurricanes, os Defiants tinham poucas chances de combater com sucesso os Bf-110s e muito menos os Bf-109s.;
• A cooperação com os caças ainda era sobremaneira dificultada por um pequeno detalhe técnico: os Defiants ainda eram equipados com os obsoletos rádios HF, enquanto que a grande maioria dos esquadrões de Spitfires e Hurricanes estavam completando a transição para os rádios VHF. Simplesmente não havia para os Defiants como pedir socorro ou coordenar as ações com os seus protetores sem a participação do controle de terra;
• O posicionamento de alguns esquadrões como o 141 em bases muito próximas à costa do Canal fez com que normalmente os Defiants não conseguissem atingir a altitude ideal de combate ao interceptar as formações inimigas. A lenta razão de subida do Defiant era um dos seus maiores pontos fracos. Com isso, os caças alemães podiam atacar os Defiants ainda em ascenção com muito mais energia – e melhores resultados. O Esquadrão 264, baseado em Manston – nos arredores de Londres – normalmente conseguia chegar na zona de combate em uma situação bem mais favorável;
• Inacreditavelmente, consta que a experiência acumulada pelo 264 foi pouco compartilhada com o 141, o segundo esquadrão a operar os Defiants. O comandante do 141, bastante cético com relação ao Defiant, preferiu usar a sua própria abordagem para o emprego do caça e os resultados foram catastróficos: em 19 de junho, na sua primeira missão de combate, sete dos nove Defiants do esquadrão foram rapidamente derrubados pelos Bf-109 da escolta alemã. Somente dois escaparam, um gravemente avariado, e isso só foi possível graças à intervenção dos Hurricanes do Esquadrão 111, chamado às pressas para intervir.
Como resultado, a reputação do Defiant foi irremediavelmente afetada e com o súbito aumento das perdas entre junho e agosto foi ordenado o imediato afastamento dos Defiants da linha de frente nas operações diurnas. Como declarou o Air Chief Marshal Hugh Dowding:
“I think it is now generally agreed that the single-seater multi-gun fighter with fixed guns was the most efficient type which could have been produced for day fighting. The Defiant, after some striking initial successes, proved to be too expensive in use against fighters and was relegated to night work and to the attack of unescorted bombers. It had two serious disabilities; firstly, the brain flying the aeroplane was not the brain firing the guns: the guns could not fire within 16 degrees of the line of flight of the aeroplane and the gunner was distracted from his task by having to direct the pilot through the communication set.
Secondly, the guns could not be fired below the horizontal, and it was therefore necessary to keep below the enemy. When beset by superior numbers of fighters the best course to pursue was to form a descending spiral, so that one or more Defiants should always be in a position to bring effective fire to bear. Such tactics were, however, essentially defensive, and the formation sometimes got broken up before they could be adopted. In practice, the Defiants suffered such heavy losses that it was necessary to relegate them to night fighting, or to the attack of unescorted bombers.”
Os Defiants foram então destacados para a caça noturna, função na qual destacaram-se a despeito das dificuldades inerentes à localização dos alvos sem os auxílios eletrônicos que estavam ainda nos seus primórdios. Nessa fase, equipados com o motor Merlin XX e algumas mudanças decorrentes, os novos Defiants Mk.II atingiram o ponto culminante do seu desempenho. Defiants foram dos primeiros caças ingleses a usar o radar embarcado AI Mk.IV, revolucionando o combate aéreo que dependia até então de condições de visibilidade ideais para a localização dos alvos. Usando as metralhadoras da torreta de forma semelhante às Schräge Musik anos depois pelos alemães, os Defiants contribuíram de forma importante para o esforço para deter os ataques noturnos alemães.
Em 1942 os Defiants foram aposentados das missões de interceptação, mas continuaram a prestar relevantes serviços como rebocadores de alvo, aviões de treinamento e no serviço de busca e resgate aéreo dobre o mar (SAR). Ao longo deste ano também foram confiados a Defiants algumas das primeiras missões de contramedidas eletrônicas (ECM), destinadas a embaralhar os sistemas alemães de radar Freya e Würzburg. O Sistema “Moonshine” foi usado pelo Esquadrão 515 contra as defesas alemãs em algumas missões “circus” na costa europeia e, depois, na cobertura ao ataque a Dieppe em agosto. O “Moonshine” foi substituído em dezembro pelo sistema “Mandrel”, que foi operado pelos Defiants do 515 até julho de 1943 com grande sucesso. Com o tempo os Defiant foram substituidos nessas missões pelos Beaufighters e Mosquitos, que podiam levar mais carga útil e ficar mais tempo no ar.
Uma missão interessante do Defiant foi como banco de testes dos primeiros assentos ejetáveis da Martin-Baeker em 1945. Os últimos Defiants da RAF operaram como rebocadores de alvo na Índia até meados de 1947.
Somente um Defiant inteiro ainda existe, e está exposto em Hendon. Partes de outros dois Defiants estão também preservadas em museus, e uma replica foi construída recentemente pela Boulton Paul Association.
Sucesso ou fracasso?
O Defiant é um avião que tem uma má imagem na história a aviação, tido como um conceito errado que, quando aplicado, causou perdas desnecessárias de vidas, recursos e tempo, tão escassos naquele momento crítico.
De fato, se o resultado final foi mesmo desastroso, estou convencido que boa parte deveu-se a falhas na doutrina operacional - decorrentes do pouco tempo disponível para descobrir as vantagens de desvantagens do equipamento e desenvolver as melhores formas de usá-lo. A premência da situação na Batalha da Inglaterra levou a RAF a lançar os Defiants, ainda em aperfeiçoamento, em missões para a qual ele não fora concebido – como a de enfrentar o inimigo protegido por escoltas sem a devida cobertura. O resultado não poderia mesmo ter sido muito diferente.
Outros aviões na história tiveram uma segunda chance, como foi o caso do Bf-110 e do Stuka, contemporâneos e vítimas dos Defiants que no decorrer da Guerra receberam aperfeiçoamentos e novos papéis, sendo úteis até o fim das hostilidades. O próprio conceito de caça especializado em interceptação de bombardeiros foi usado com bastante sucesso pelos alemães enquanto as escoltas aliadas não conseguiram penetrar o suficiente em território inimigo para oferecer uma proteção eficaz. Com uma melhor motorização (disponível para o Defiant II, por exemplo), a performance melhorou – especialmente na razão de subida, seu ponto mais fraco. A adoção de um conjunto de metralhadoras ofensivas (ou a sincronização das metralhadoras da torreta com a hélice permitindo atirar para a frente) poderia ter aumentado a chance de sobrevivência dos Defiants em combate direto. E, acima de tudo, o uso coordenado dos Defiants com os Spitfires e Hurricanes em formações mistas, conforme concebido originalmente, certamente teria dado resultados muito mais positivos do que o que foi verificado.
Por outro lado, praticamente tudo o que o Defiant podia fazer novos modelos como o Beaufighter e o Mosquito também faziam, com mais eficácia. Em última análise, isso foi o que ditou o seu fim.
Revolucionário, pioneiro, surpreendente, o Boulton-Paul Defiant foi, sem dúvida, um dos mais interessantes aviões da II Guerra Mundial.
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